quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A volta do Escritor


A Volta do Escritor



Era uma vez. Não, na verdade eram muitas vezes, quase sempre! Um menino astuto e pacato; eram raras as ocasiões em que era ele o locutor principal na conversa de amigos. Mas, assim mesmo, não tinha a oratória inválida ou vazia. Muito pelo contrário: a idiossincrasia mais calma e quase calada é completamente ligada com sabedoria e equilíbrio, e este também é ligado ao silêncio. Após a explicação de tais substantivos abstratos, não é preciso falar mais nada. O menino tinha o bom exercício não obrigatório de escrever. E era bom naquilo. O que não falava escrevia, troca mais que justa: troca sábia, estratégica, talvez. No começo, escrevia tudo o que pensava, sem pensar na quantidade de assuntos em um só texto. Escrevia de tudo, sobre o que acontecia na semana passada, sobre o conceito de amigos e aquilo de que muitos têm vergonha de mostrar: escrevia sobre si mesmo. Sem nenhuma força superficial de mudar o estilo em relação a palavrão e vírgula fora do lugar. Merecia o prêmio que poderia ter recebido por não ter vergonha se era ridículo, ou vulgar. É uma vergonha os humanos pensarem que não são vulgares, como se sê-lo fosse pecado ou maldade. Desculpe todos os dicionários. Os conceitos na cabeça de cada um se misturam, de vez em quando. O aviso está dado. Meses se passaram e ele evoluía cada vez mais. Tinha estilo próprio. Mas começou a ter qualificação, um jeito sistemático de escrever. A qualificação na geografia é sempre um processo de avanço. Em tal circunstância, porém, foi o pior que lhe aconteceu, porque tudo aquilo que o menino ia escrever tinha que ser qualificado, perdendo aquela aleatoriedade, verve fluente e natural, que, por sua vez, era a coisa mais original nele. Foi um desperdício: ele quase não escrevia mais, porque sua qualificação não o deixava cometer erros vulgares. Foi uma tristeza. -- O que está acontecendo comigo? – perguntava-se. Será que minha maior diversão está indo embora, sem olhar pra trás, com desinteresse, árido? E eu? Onde fico? Ele culpava algo que lhe era alheio, em vez de se culpar, de acordar e ver que a simplicidade também conseguia elucidar qualquer conteúdo. A simplicidade não é pobre nem é rica, é humildemente clara e basta! -- Por que enfeitar o essencial sempre, sempre, se a concisão tira a capa obscura do aparato? -- refletia, em contundente confusão. Ele comparava esse seu caso particular e doloroso com outras coisas. Já chegou a imaginar duas meninas, uma ao lado da outra. A primeira, andando pela rua com o cabelo solto, sandália simples de couro, brinco de pena de animal e saia comprada em feirinha, daquelas bem baratas. Do outro lado, uma menina que já parecia mulher pelo fato de estar usando um tamanco pontudo, complexo, prateado e barulhento; pulseiras com cara de argolas duras e resistentes, também barulhentas e dessa vez compradas em shopping. Uma mulher de cabelo preso, toda ereta e apressada. Pensou nas duas meninas, tentou dar-lhes a mesma idade, para que sua tese fosse justa -- o menino já se desesperava, não entendendo mais porque escrevia tão pouco. Seus pensamentos estavam estéreis, insípidos? Vendo as duas moças, ele preferiu a primeira: achou tão natural aquilo, uma espécie de liberdade bonita, modelo de vida à vontade, intrínseco. Parecia que a menina deixava os problemas pra depois, pra lá, ao ponto de humilhá-los. Sai pra lá, vocês não conseguem me embrutecer. Aquela roupa simples, aquele cabelo solto, em balanço espontâneo à medida que andava lhe parecia tão jubiloso, exultante, feliz. Simplesmente feliz. Depois disso, então, o garoto decidiu cabalmente que seus pensamentos continuavam vivos, viçosos, borbulhando, com vontade de ser passados para o papel. Era a etiqueta que não deixava. Que horror! A partir do remate, ele primeiramente se aliviou, afrouxou-se e deu um berro: -- Ah!!! Eu voltei a ser normal! -- Sentou-se no banco da sala de sua casa e resolveu escrever, queria escrever qualquer coisa, escrever, ver o lápis deslizar atrevido, sem medo ou cautela fresca. O que não devia ter naquele momento era cautela fresca! Tomou ódio daquilo. Não sou fresco! Nem nunca fui. À medida que escrevia, mudava de sensação, e eram sensações gradativas para o positivo, para a direção do frenesi. Acabou o texto, olhou o papel e, na verdade, nem queria saber se estava bom, elegante, envolvente, inteligente ou podre aquilo. O que importa é que ele voltava a ser escritor. Depois, escreveu mais muitas coisas, umas belas e outras inúteis, feias, ridículas. Um dia foi jogar fora essas últimas porque não lhe fazia sentido tê-las, e, de relance, passou os olhos em uma delas. Começou a ler. No meio daquele texto, havia uma frase esquisita. Era feia. Não, não era feia. Era esquisita. Não! Não sabia dar uma característica àquela frase. Era exótica! Sim, aquele trecho era exatamente exótico! Encontrou a palavra certa e então hesitou em colocá-la num papel verde e pregá-lo na porta do seu quarto. Todo dia que chegava em casa e ia deitar em sua cama, via aquela frase, e isso foi se repetindo confortavelmente; não se irritava com aquilo. Pegou intimidade com a frase. Passados quatro meses começara um romance, um belo romance que ficou conhecido pela redondeza e cuja primeira frase era aquela.


Fábio Campos Coelho (UnB)