segunda-feira, 3 de maio de 2010

Grilos da poesia



Ontem fui ter uma conversa com a poesia, escancarada no cotidiano.
Ela me atendeu com voz abatida e insatisfeita,
como que dizendo que os poetas não estavam fruindo
a função do papel e caneta em uma dimensão ampla, humana e flexível,
que mostraria à sociedade a magia crua do poder de se expressar.

Eu lhe retruquei alegando as mais belas coisas já ditas pelos poetas,
a dedicação deles em fazer algo truz e solene
e em seguida lhe perguntei por que ela se sentia assim.

A poesia me disse, então, que não está somente na metrificação e sonoridade,
na grandeza lírica, pessoalmente distinta de cada vate.
A poesia está em uma briga de casal,
da qual saem conclusões nunca engendradas,
que aplacam o instinto maquiavélico e astuto por prevenção
e conduzem à predileção pela afabilidade e compreensão,
diante de toda frieza e rápido reflexo com a sacanagem alheia.

A poesia me disse que está em um dia lindo em uma cachoeira,
junto com amigos de colégio, sem o problema das apostilas e agendas,
onde se tem apenas o conforto e brincadeiras de impúberes
embevecidos com a sinceridade que a natureza lhes propõe.

A poesia me disse que está no supermercado,
em meio a sacolas e carrinhos, pessoas bonitas e estranhas,
maçãs, cebolas, laranjas e um pensamento que sossega a cabeça
presa pela rotina desgraçada
e acalma os ânimos dos cansados com o escritório definitivo
e ausente de cores vivas.

A poesia me disse que está na visita aos deficientes físicos e mentais,
limitados a cadeiras de rodas e babadores,
sob tutela de pessoas com função divina.
Uma visita onde o visitante se arrepende de todo vacilo,
grotesco ou ínfimo, porém o arrependimento é tão pujante,
que o arrependido tem vergonha da própria existência
e a julga, sem escrúpulos ou condições consoladoras,
desprovida de merecimento ou compensação.

A poesia me disse que está no pesadelo das quatro da tarde,
um pesadelo de espécie cai-na-real,
no qual a pessoa sonha que está diante de um homem celerado
que matou sua avó, seu cão e sua namorada
e agora lhe afronta com cinismo contido de sadismo.
Ainda bem que foi só um pesadelo, diz o dorminhoco
com sensação de vida nova, valorizando mais sua realidade dócil
e prometendo a si mesmo que doravante
vai aproveitar com mais carinho o que tem.

A poesia, por fim, me disse que por isso estava tão triste
e que está também em toda verdade recalcada,
por não ter essência correta, normal ou sensata
no contexto daquilo que as pessoas consideram plausível,
continuando essa verdade intacta, no interior da intimidade
por medo ou pudor.

Ela disse que está no sonho realizado pelo camelô
de comprar um apartamento,
está no dia cansativo, pegando-se o último ônibus para casa,
está na lembrança da avó maternal que já morreu,
no sexo interrompido pelo toc-toc na porta do quarto,
na fragilidade e feliz infância de um terrorista,
no lamento de uma atriz pornô por não ter esposo,
no casamento que não se consumou pela inexistência de um olá,
na poesia ainda não feita pelo poeta
e em todo sentimento que os dicionários não traduzem.

Fábio Campos Coelho (03.05.10)